Artigo por Fernanda de Freitas Leitão
O testamento público é o ato (negócio jurídico unilateral) mais solene do nosso Código Civil, exigindo-se a leitura em voz alta e clara na presença das partes, ou seja, o Tabelião deverá ler o testamento, a um só tempo, ao testador e às duas testemunhas, além de outros requisitos expressos na nossa legislação substantiva, a fim de que aquele instrumento exista, seja válido e eficaz, após a morte do testador, segundo as diretrizes do artigo 1.864 e seguintes do Código Civil brasileiro.
O testamento é um ato personalíssimo, não admite assistência, representação, tampouco procuração e, a partir dos 16 anos, é permitida a sua realização, sem assistência dos pais, não havendo limitador de idade em relação à senilidade. O que a lei sempre exige é a lucidez do testador, ao contrário do que mostra o imaginário social, sobre limites de idades.
No entanto, como proceder quando nos deparamos com determinada pessoa que esteja sob a síndrome do encarceramento (ou locked in syndrome)? O que é isso? Essa síndrome é bem retratada nos filmes “Johnny vai à guerra” e “O escafandro e a borboleta”. No filme “Johnny vai à guerra”, de 1971, o recruta Joe Bonham, durante a Primeira Guerra Mundial, acorda em uma cama de hospital e percebe que perdeu sua mobilidade e seus sentidos. Joe Bonham perdeu a função dos braços, pés, olhos, nariz, das orelhas, da língua, dos maxilares e de toda a face. No entanto, permaneceu indesejavelmente lúcido.
No segundo filme, ” O escafandro e a borboleta”, de 2008, o editor-chefe da revista “Elle”, Jean-Dominique Bauby, aos 43 anos de idade tem um acidente vascular cerebral devastador, que lhe retira toda a mobilidade, deixando-lhe apenas com um olho (o outro teve que ser ocluído) e a audição. Jean-Dominique, tal qual o recruta Joe Bonham, mantiveram-se lúcidos durante todo o seu tempo de vida.
Joe conseguiu se comunicar batendo a cabeça em código Morse; Jean- Dominique, por meio do movimento de um olho. Nas duas situações, todos aqueles que conviveram com eles (médicos, amigos, terapeutas, entre outros) foram unânimes em afirmar, de forma categórica, que ambos estavam indubitavelmente lúcidos.
A questão que ora se nos descortina é a seguinte: poderá o Tabelião lavrar um testamento de determinada pessoa, que, infelizmente, se encontra nessa condição de prisioneiro do próprio corpo?
Não tenho dúvida em afirmar que não só pode, como deve, haja vista que a função do Tabelião, nessa hipótese, reveste-se de um poder-dever, que conferirá efetividade ao sobreprincípio da dignidade da pessoa humana. A manifestação da vontade é uma das grandes conquistas das leis civilistas da modernidade, sobre ela assenta a condição primeira dos negócios jurídicos. Assim, mostra-se um dever do Tabelião tornar exequível a vontade manifesta fora dos padrões de normalidade.
Todavia, deve restar claro que só se é permitido à pessoa que esteja sob a síndrome do encarceramento, o testamento público, por se tratar de situação idêntica à prevista no art. 1.867, do Código Civil brasileiro, que determina que a pessoa cega só pode se expressar a sua última vontade por meio do testamento público.
Obviamente, diante dessa situação, assinará pelo testador, a seu pedido, uma das testemunhas instrumentárias.