Fernanda Leitão, Tabeliã do 15 Ofício de Notas e vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil
Para iniciar, é mister diferenciar o direito real de habitação, previsto no inciso VI, do art. 1.225, do Código Civil brasileiro, que integra o Livro III, Do Direito das Coisas, daquele previsto no art. 1.831, inferido no Livro IV, Do Direito das Sucessões.
O primeiro demanda para a sua constituição a escritura pública e o consequente registro. O segundo decorre do princípio da saisine, pelo qual se estabelece que a posse dos bens do de cujus se transmite aos herdeiros imediatamente, na data de sua morte. Esse princípio foi consagrado em nosso ordenamento jurídico pelo art. 1.784, do Código Civil. No entanto, a posse não é concedida ipso iure. O cônjuge ou companheiro supérstite terá que requerê-lo e implementar determinadas condições impostas por lei para fazer jus a esse direito, devendo, nas duas situações, que esse direito seja registrado para alcançar o status de direito real, oponível erga omnes, vide o item 7, inciso I, do art. 167 da Lei nº 6.015/1973.
O foco desse paper será tão somente o direito real de habitação decorrente do direito sucessório, mormente, sobre a função desse direito. Portanto, deixaremos de lado outras discussões, algumas já ultrapassadas, e.g. se o companheiro fará ou não jus a esse direito.
Com efeito, em apertada síntese, a função do direito real de habitação é conceder o direito à moradia ao cônjuge ou companheiro sobrevivente e, com isso, garantir concretude do princípio da dignidade da pessoa humana.
Atualmente, esse direito está previsto, como já dito acima, no art. 1.831, do Código Civil, de forma bastante ampla, ou seja, uma vez concedido esse direito de habitação, o cônjuge ou o companheiro o usufruirá vitaliciamente, ainda que contraia novas núpcias ou união estável.
A vetusta legislação não era tão abrangente quanto a atual. O direito ao usufruto vidual e o direito real de habitação, primeiramente previstos na Lei nº 4.121/1964 (Estatuto da Mulher Casada), depois nos incisos 1º e 2º do art. 1.611 do Código Civil de 1916 e, posteriormente, na Lei nº 8.971/1994, na Lei nº 9.278/1996 e na Lei nº 10.050/2000 (direito real de habitação ao filho deficiente) eram mais limitados. Vale dizer que a legislação anterior condicionava a concessão desse direito até que o cônjuge ou o companheiro não convolasse novas núpcias ou união estável.
É certo também que já existe uma abalizada e forte corrente doutrinária, liderada por Luiz Paulo Vieira de Carvalho e Ana Luiza Maia Nevares, entre outros não menos importantes, que vêm se insurgindo contra a extensão e, por vezes, falta de funcionalidade desse direito.
Vejamos o exemplo que se segue: Maria e João são casados sob o regime da separação convencional e absoluta de bens, ambos em segundas núpcias e com prole dos relacionamentos anteriores. O casal mora com Pedro, filho de seis anos de Maria, no imóvel que os pais de Maria deixaram para ela. Com a morte de Maria, se ela não fizer testamento, o imóvel deixado por seus pais será partilhado, em partes iguais, entre o seu cônjuge e o seu filho menor. No entanto, o seu cônjuge terá sobre esse imóvel o direito real de habitação, alijando dessa forma seu filho Pedro da moradia própria e legítima. Cabe lembrar que o direito do cônjuge estará garantido mesmo que ele contraia novas núpcias ou união estável.
Essa situação não é um exemplo criado, trata-se de um fato concreto e real, que vemos no dia a dia no Tabelionato.
Dessa forma propomos, de lege ferenda e seguindo a melhor doutrina, a alteração do art. 1.831, do Código Civil, no sentido de restringir o direito real de habitação ao cônjuge ou ao companheiro, com limites temporais, e estendê-lo a outras pessoas que realmente necessitam dessa proteção, dando ênfase ao princípio do cuidado (vide Parágrafo único do art. 792 do Código Civil) e, consequentemente, repita-se, conferindo concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Artigo originalmente publicado no site Justiça & Cidadania