Por uma alteração do atual modelo contratual notarial: entre certezas, angústias e vontades de uma tabeliã

  1. Introdução

Escrevi este artigo, em sua primeira versão, em julho de 2001, precisamente há 18 (dezoito) anos, logo após o meu ingresso como Delegatária do 15º Ofício de Notas da Capital,em 1998, por meio de concurso público de provas e títulos, sendo aquele o primeiro realizado no Brasil. Já naquela época, insurgi-me contra a forma em que eram lavradas as escrituras públicas, reputava-as prolixas, com diversos termos desnecessários, anacrônicos, inacessíveis e incompreensíveis à maioria dos cidadãos.

No presente artigo quero justamente dividir e socializar algumas reflexões quanto a certas práticas notariais que são, em alguns casos, um desserviço, havendo um desvirtuamento de nossa atuação quando a forma se torna mais relevante que o conteúdo.

Nessa perspectiva, como tabeliã tenho sido obrigada a confrontar diversas práticas à luz da lei, mas, sobretudo, tenho sido confrontada por um atravessamento ético em perceber como certas práticas solidificadas não têm qualquer sentido e estão em confronto com o interesse diário dos cidadãos.

E, ao que me parece, não se trata de um problema nacional. Em 2010 o presidente Obama firmou o chamado Plain Writing Act of 2010, que, entre outras providências, previa a simplificação da linguagem, a referida lei exige que agências federais usem “comunicação governamental clara, que o público possa entender e usar”. Em 18 de janeiro de 2011, o presidente Obama emitiu uma nova ordem executiva, “E.O. (Executive Order, traduzindo em ordem executiva) 13.563 – Melhorando Regulamentos e Análise Regulatória”. Essa ordem executiva declara que “[o sistema regulatório] tem que se certificar de que os regulamentos sejam acessíveis, consistentes, escritos em linguagem simples e fáceis de entender. [2]

Duas outras ordens executivas (E.O. 12.866 e E.O. 12.988) cobrem o Ato de Linguagem Simples em regulações. Há alguns anos reitero considerações sobre esse assunto, no entanto, confesso-lhes que, até agora, pouco mudou nesse sentido. Na medida em que a persistência me permite, decidi revisitá-lo, no intuito de tentar, ao menos, embutir algumas reflexões ensejadoras de mudanças. Talvez o tônus do presente artigo seja a esperança de novos ventos sobre a práticanotarial, no sentido de que as palavras possam assumir mais o teor da comunicação do que as substâncias burocráticas.

Estamos vivendo uma época de grandes e incessantes transformações, tanto sociais como tecnológicas. As pessoas buscam, cada vez mais, a praticidade e a objetividade na vida cotidiana, mormente nas relações profissionais. A linguagem moderna se caracteriza pela clareza e objetividade, dispensando palavras ou termos ininteligíveis para o cidadão comum.

Vejam como são as mensagens transmitidas pelo WhatsApp! Curtas e diretas. Essa lógica traduz a linguagem atual.

Além disso, com a chegada avassaladora e disruptiva do Blockchain, já se fala em contratos inteligentes (smart contracts). E o que isso quer dizer? Contratos celebrados nos moldes da tecnologia Blockchain autoexecutáveis. Melhor explicando:

 (…) os contratos inteligentes são programas de computador que protegem, fazem cumprir e executam a liquidação de acordos registrados entre pessoas e organizações. Como tal, eles ajudam na negociação e na definição desses acordos. (TAPSCOTT : 2017, p. 139)

Seria, portanto, inimaginável pensar que nunca chegarão ao nosso mundo jurídico notarial tais inovações? Creio que não. Se formos fazer uma retrospectiva, veremos que o novo vem sem pedir licença, de forma abrupta e irreversível, vide os discos de vinil, o Facebook, o Uber,Airbnb, entre outros tantos largamente conhecidos. Quando poderíamos  imaginar que o processo eletrônico se tornaria uma realidade?

Partindo dessas premissas, a sugestão é que nos adaptemos a essa nova realidade, pois, caso contrário, seremos certamente abduzidos do sistema, inaptos aos novos tempos.  

  • As práticas para além da forma

Tecidas essas considerações e esses receios, percebo que a elaboração de um bom contrato não está calcada no uso de palavras difíceis ou em um amontoado de folhas, que o usuário dos serviços extrajudiciais não entende no geral, tampouco pelo uso de frases e termos inúteis para a confecção do documento.

A partir dessas observações cotidianas, tomei a iniciativa de alterar o modus operandi na confecção de algumas escrituras públicas, que guardam em si uma grande carga de termos desnecessários, repetição de palavras sinônimas, termos jurídicos que, não raro, não são compreendidos pela pessoa que está comprando um imóvel, por exemplo, e por vezes nem mesmo por aquele escrevente que redigiu a escritura.

Nesse aspecto, pontuo alguns termos recorrentemente  utilizados que poderiam ser substituídos por outros mais claros ou mesmo abstraídos do texto escritural, assim temos: Partes entre si, justas e contratadas. Não seria melhor dizer: “compareceu, como vendedor, fulano de tal”?

Isso também nos remete ao bem como farei enviar nota ao competente ofício distribuidor, no prazo e na forma da lei. Ora, o ato da distribuição da escritura pública compete ao Ofício de Notas, que lavrou o aludido ato, e ao Registro Imobiliário competente. Portanto, trata-se de uma frase que pode e deve ser abolida.

Vale, igualmente, destacar outro grande exagero, verificado quando se trata da quitação. Normalmente, nas escrituras públicas de compra e venda, quando o vendedor dá a quitação, coloca-se que o vendedor dá a mais ampla, plena, irrevogável e rasa quitação. Ora, se o vendedor deu a quitação, está quitado. Se fosse quitação parcial ou com ressalva, aí sim, deveria consignar expressamente essa situação.

Outra amostra do que estou explicitando ocorre na seguinte situação: O outorgante vende, como de fato vendido o tem, pelo preço certo e ajustado de R$. Não seria melhor dizermos: “O vendedor vende ao comprador o imóvel supracitado pelo preço de R$ …”?

A propósito, o que significa a palavra outorgante? Outorgante quer dizer que ou aquele que outorga, concede, consente. Sendo assim, outorgante vendedor já seria uma redundância. Bastaria mencionar vendedor, doador, comprador, donatário…

Outra frase célebre é a presente promessa é irrevogável e irretratável. Não seria melhor escolhermos um dos dois adjetivos? Não podemos esquecer outra expressão usual verificada nas escrituras:  Este instrumento é celebrado nos melhores termos de direito; Alguém já firmou algum documento nos piores termos de direito?

Outro termo jurídico excrescente que, normalmente, consta em todas as escrituras, é a evicção de direito. O art. 447[3], do Código Civil, determina que, nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção, aqui compreendida como a perda da coisa em virtude de decisão judicial ou administrativa que concede o direito – total ou parcial – sobre ela a um terceiro estranho à relação contratual em que se deu a aquisição (De Farias; Rosenvald, 2015, p. 486.) 

Por que ninguém se refere aos vícios redibitórios[4]? Porque as consequências jurídicas dos vícios redibitórios se encontram na lei, exatamente como na evicção de direito.

E no tocante aos contratos de doação? Por que razão não se insere na redação da escritura que o doador não responderá pela evicção de direito? Por um motivo muito simples, a lei assim já o determina, com uma única exceção.

Ora, se o alienante é obrigado a resguardar o adquirente dos riscos da evicção, só deveria  inserir o mencionado termo na hipótese de o alienante não responder, ou quando houver reforço, diminuição da garantia ou a exclusão da responsabilidade, fora esses casos, a colocação do termo “evicção de direito” é  totalmente despicienda.

Por que razão usamos esse termo: “Saibam quantas estas virem…”? Indaga-se, alguém atualmente se expressa dessa forma? Não seria mais apropriado colocarmos: Aos …. dias do mês….?

O constituto-possessório[5] ou clausula constituti e a traditio brevi manu[6] são termos igualmente intrigantes que atormentam o mundo notarial. Será que alguém sabe o momento correto de imitir o comprador na posse do imóvel, por meio do constituto-possessório ou da traditio brevi manu?

Sabemos que o constituto-possessório e a traditio brevi manu se dão quando se transfere a posse ficticiamente. Mas será que todos realmente sabem o exato momento para utilizá-lo de forma correta? Ou o inserem indistintamente em todas as escrituras?

O constituto-possessório estava positivado no inciso IV, do art. 494 e inciso V, do art. 520, do antigo Código Civil, que tratava respectivamente de modos de aquisição e perda da posse. O Código Civil de 2002 não o previu expressamente. No entanto, a melhor doutrina entende que o instituto permanece no nosso sistema jurídico de forma implícita no art. 1.204[7]. Nesse sentido, a  I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal compreendeu a sua aplicação ao editar o enunciado 77[8], devendo ser tratada de forma idêntica a traditio brevi manu, por ser o reverso do constituto-possessório[9].

Agora, seria razoável pôr esses termos em um contrato envolvendo apenas cidadãos leigos da linguagem jurídica? Não estaríamos violando o dever de informação, contido na cláusula geral da boa-fé objetiva?

Lembramos as palavras de  Miguel Reale ao definir  boa-fé objetiva como:

“A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública (REALE: 2003, p. 4)”.

Ora, o que se impõe a todos nós operadores do Direito é o dever que extrapola uma simples conduta profissional, para além nos impulsiona a boa-fé objetiva a um agir condicionados aos deveres anexos que resultam de tão importante princípio,  como   dever de informação; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão.

Não pode ser esquecida outra menção dispensável também recorrente, nos seguintes termos:  “…O presente contrato é extensivo aos seus herdeiros e sucessores”.

Como conhecedores da norma  sabemos que, em relação aos contratos impessoais, transmitem-se os direitos aos respectivos herdeiros ou sucessores, não se aplicando essa regra quando se tratar de contratos personalíssimos. Mais uma vez, a consequência jurídica está na lei.

Nesse mesmo diapasão, saliento a nossa tendência à prolixidade quando lavramos uma procuração para alienar determinado imóvel. Devemos deixar expresso que o procurador poderá vender, dar quitação, transmitir domínio, responder pela evicção, e por aí afora, sob pena de a mencionada procuração não ser aceita no serviço notarial, registral ou nas instituições financeiras, que se pretende realizar o ato.

Nesse caso, não bastaria dizer que um procurador tem poderes para a venda, os outros poderes não seriam corolários do primeiro, que é a venda? Aprendemos no curso de Direito que quem pode o mais, pode o menos, mas na prática notarial essa máxima não surte quase nenhum efeito. Se posso vender, a fortiori, posso dar quitação, não seria o lógico?

Isso, apesar de aparentemente ser um detalhe irrelevante, gera um grande

problema ao sistema notarial, posto que provoca insegurança quando se lavra o ato, haja vista que não sabemos de antemão se aquela procuração será aceita ou não perante o outro tabelionato, em especial quando a procuração é dirigida à prática do ato principal em outro estado da nossa Federação ou quando é originária de outro país.

Vejamos que o sentido da burocracia nesses pontos, previamente analisados neste artigo, dá-nos conta de um processo de burocratização textual, não raro inócuo. Isso faz lembrar a teoria burocrática de Max Weber que, ao contrário, sustenta a burocracia como espécie de organização humana baseada na racionalidade, ou seja, os meios devem ser analisados e estabelecidos de maneira totalmente formal e impessoal, de modo a  alcançarem os fins pretendidos proficuamente. O que, infelizmente, no que tange a nossa análise, nem sempre é efetivo.

Enfim, acreditamos que essas propostas de mudanças não se trata, simplesmente, de querer por diletantismo, alterar a forma em que é lavrada a maioria das escrituras no nosso país, mas, sim, de adequá-las às normas e aos princípios determinados tanto na Constituição da República, que prima pelo princípio da solidariedade em seu artigo 3º [10],  como ao seu corolário previsto no Código Civil, que é o princípio da boa-fé objetiva e os seus deveres anexos, quais sejam, o dever de proteção, informação e cooperação, sendo certo, ainda, que a sua inobservância acarreta a  violação positiva do contrato, da função social do contrato e da justiça contratual.

  1. Conclusão

Em breve síntese, o presente paper se propõe a trazer à luz questionamentos oriundos de anos de experiência como Tabeliã de um ofício de notas, em que, entre outras situações, percebi a grande barreira imposta pelo excesso de burocracia, que se encontra atrelado não apenas aos procedimentos mas, principalmente, aos documentos necessários à prática do ato notarial.  

Ocorre que, na maior parte dos casos, as consequências dos atos praticados em cartório encontram previsão legal de modo que a inclusão de tais dispositivos nos documentos públicos confeccionados para e por interesse de particulares somente tornam onosso serviço incompreensível e inacessível ao cidadão comum, afastando-se de sua função primordial, qual seja, a promoção por meio da publicidade, dos atos oriundos da autonomia privada das pessoas.

Assim, o que se percebe hoje é uma atividade cartorária burocratizada e anacrônica, em completo descompasso com a evolução das práticas sociais, que buscam cada vez mais a simplificação e agilidade nas transações.

Referências bibliográficas.

Farias, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: contratos – teoria geral e contratos em espécie. São Paulo: Atlas, 2015.

Reale, Miguel. A boa-fé no Código Civil. 16.08.2003. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>. Acesso em: 09 de junho de 2018

Tapscott, Don e Tapscott, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: SENAI-SP, 2017.

Weber, M. The Theory of Social and Economic Organizations. Reader in Bureaucracy. Glencoe, p. 18-27, 1963.


Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada, em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de 1998, passou a atuar como quinta Tabeliã do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

Disponível em: https://www.congress.gov/bill/111th-congress/house-bill/946.

Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.

Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.

Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas.

cláusula contratual mediante a qual o alienante (vendedor) transmite a posse da coisa alienada ao nome do comprador, embora continue a deter o bem; desprendimento de posse.

Modalidade de tradição ficta, quando o detentor passa a ser possuidor por ter adquirido o bem.

Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.

Enunciado nº 77, da Jornada de Direito Civil: A posse das coisas móveis e imóveis também pode ser transmitida pelo constituto-possessório.

Altera a titularidade na posse, de maneira que, aquele que possuía em seu próprio nome, passa a possuir em nome de outrem (Ex.: eu vendo a minha casa a João  e continuo possuindo-a, como simples locatário). Contrariamente, na traditio brevi manu, aquele que possuía em nome alheio, passa a possuir em nome próprio (por exemplo, é o caso do locatário, que adquire a propriedade da coisa locada).

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

 I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

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