Proposta de reforma tributária quer trocar dez impostos por apenas dois

Proposta de reforma tributária quer trocar dez impostos por apenas dois

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A estrutura tributária brasileira, com regras complexas e, muitas vezes, conflitantes, fomenta o litígio, afirmam especialistas. Um mesmo produto pode ser classificado de maneira diferente por órgãos do governo. Isso acarreta um risco bilionário: levantamento mostra que, no ano passado, 35 grandes empresas brasileiras informaram, em seus balanços, que podem ter perdas de até R$ 549 bilhões em disputas sobre impostos. A estrutura tributária brasileira fomenta o litígio. Há inúmeras normas, que muitas vezes divergem entre estados e esferas de governo. Estudo exclusivo do professor do Ibmec-RJ Paulo Henrique Pêgas revela que, no ano passado, as 35 maiores empresas de capital aberto do país informaram, em seus balanços contábeis, que têm risco de perder até R$ 549 bilhões em processos, administrativos e judiciais, referentes ao recolhimento de tributos.

— Esse valor corresponde a 42% do patrimônio líquido dessas empresas. Mesmo que parte desses processos seja classificada de perda remota, o valor é tão grande que, se uma empresa perder um terço das causas, pode quebrar. O problema não é o tamanho da carga tributária, é não saber se está certa a forma como o imposto está sendo recolhido — diz Pêgas.

O levantamento mostra que, quando se exclui os bancos, as disputas fiscais das empresas não financeiras ocupam um espaço ainda maior do patrimônio líquido: 55%, com dívida total de R$ 454 bilhões. O maior patamar é observado no setor de telecomunicações. Os processos correspondem a 77%, em média, do patrimônio líquido.
— Em empresas multinacionais, é impressionante como os balanços mostram os processos concentrados no Brasil. Lá fora, não há esse contencioso tão grande — observa Pêgas.

O risco trabalhista, sempre citado como uma dos maiores preocupações das empresas, é bem inferior, de acordo com as informações contidas nos balanços e formulários de referência enviados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM, o órgão regulador do mercado de capitais). O risco tributário nessas empresas é 6,4 vezes maior que o contencioso trabalhista, que chegou a R$ 86 bilhões, o equivalente a 7% do patrimônio líquido.

Para dar conta da gestão tributária, o grupo Chinezinho, que tem três fábricas no Estado do Rio, mantém nove contadores exclusivamente dedicados à missão, mais dois escritórios de advogados tributários prestando assistência. Segundo Fabrício Ferreira, diretor administrativo e financeiro do grupo, que comercializa 350 itens diferentes, cada produto tem uma particularidade tributária, dependendo da matéria-prima que é usada:
— O regime tributário muda dependendo do estado do qual compramos o insumo, se a empresa tem incentivos ou não, se é de um produtor rural.

O tempo despendido para poder cumprir as exigências deixa o Brasil na lanterna de uma lista de quase 200 países, de acordo com estudo do Banco Mundial sobre ambiente de negócios. Pelo levantamento, referente a 2015, as empresas dedicam 1.958 horas por ano, em média, para preparar, pagar e acompanhar o recolhimento de tributos. O tempo corresponde a quase três meses de trabalho e é 5,7 vezes maior que a média da América Latina.
— O Brasil é um ponto fora da curva quando se trata de impostos sobre consumo. Pode-se arrecadar muito com uma legislação mais simples. Na maioria dos países, há um só imposto sobre comércio e serviços. No Brasil, são cinco: PIS/Cofins, ICMS, ISS e IPI — afirma Bernard Appy, exsecretário executivo do Ministério da Fazenda e diretor do Centro de Cidadania Fiscal.

Appy critica ainda a autonomia dos estados para legislar sobre impostos. E os municípios também podem fixar regras. Mas o economista cita alguns avanços, quando se trata de Imposto de Renda:
— Para a pessoa física, pagar Imposto de Renda é mais fácil no Brasil. Nos Estados Unidos, boa parte dos contribuintes é obrigada a contratar um contador para fazer suas declarações.

A advogada tributarista Ana Teresa Lima Rosa Lopes, em sua dissertação de mestrado na FGV Direito SP, também analisou disputas tributárias nas 30 maiores empresas de capital aberto. Em 2014, os processos correspondiam a 32% do valor de mercado das companhias. Ela afirma que a legislação é ruim e considera o Supremo Tribunal Federal (STF) muito lento para analisar as questões.
— Às vezes, não julgar é também julgar. As questões deixam de existir, por mudança no produto ou na própria legislação, que foi alterada antes da decisão do Supremo. Outro problema é que as decisões, muitas vezes, só beneficiam quem entrou com a ação na Justiça. Isso aumenta a judicialização. Se há uma controvérsia, todo mundo entra com ação para se garantir — afirma Ana Teresa.
diz que as disputas acabam nos tribunais administrativos e judiciais devido ao fato de o sistema de resolução de conflitos “ser muito ineficiente” :
— Quando há divergência de interpretação, o sistema de solução tem que operar desde o início, antes de virar contencioso. Os processos demoram dez, 15 anos.

O sistema tributário brasileiro cria situações inusitadas. Até mesmo uma gráfica, com 26 empregados, pode ter uma complexidade única. Sergei Lima, presidente do Conselho de Assuntos Tributários da Firjan, vive essa situação na sua empresa, a Gráfica Lima. Dependendo do cliente, ele tem de recolher IPI, ICMS ou ISS :
— Se eu produzir uma caixa de remédio, vou reAppy colher IPI. Mas, se for um rótulo, ou uma etiqueta, devo pagar ICMS. Já quando imprimo um papel timbrado, é ISS. Mas não sei explicar a lógica do legislador para estabelecer essas diferenças.

Entre os principais motivos para contestações na Justiça e no Executivo está a identificação de insumos da produção para conseguir crédito tributário. Ana Teresa cita uma empresa onde todos os itens da produção são “laudados”. Até um simples parafuso tem um laudo técnico pronto para atestar que faz parte da produção. Como os impostos incidem sobre o valor adicionado ao produto, a empresa acumula um crédito tributário sobre o insumo que usou para abater do imposto devido. A discussão é : o produto é insumo ou não ?
— Por exemplo, a lenha usada na caldeira para produzir pão é considerada insumo e gera crédito para ser abatido no pagamento de PIS/Cofins. Mas a lenha usada para manutenção da caldeira usada na produção, não — explica Pêgas.

O segundo motivo para os litígios, de acordo com Appy, é o nível de detalhamento dos impostos, já começando pela Constituição :
— Há mais de mil palavras na Constituição tratando de matérias tributárias. Em outros países, há muito menos.

Há ainda a guerra fiscal entre os estados. Os benefícios tributários a que os governos estaduais recorrem para atrair empresas acabam gerando decisões administrativas pouco lógicas. Pêgas cita o exemplo de uma rede de drogarias que prefere fazer seus caminhões de entrega percorrerem 500 quilômetros e gastar seis horas de viagem para aproveitar os benefícios tributários dados por Minas Gerais. Como as filiais ficam mais perto da divisa com São Paulo, seria mais rápido mandar os medicamentos do centro de distribuição de Ribeirão Preto, percurso que seria de duas horas e 170 quilômetros. Mas, agindo assim, a empresa perderia o benefício fiscal dado por Minas.

Segundo Appy, grande parte da movimentação de cargas no Brasil é explicada pelos benefícios tributários que podem ser oferecidos pelos 26 estados e pelo Distrito Federal :
— Essa situação certamente diminui a produtividade e tira pontos do Produto Interno Bruto (PIB) potencial (a capacidade de o país crescer). A simplificação do complexo sistema tributário brasileiro é exatamente o objetivo de uma proposta que já está no Congresso. O principal alvo são os impostos que incidem sobre o consumo. Pela proposta, cujo relator é o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), dez impostos deixariam de existir: IPI, IOF, CSLL, PIS, Pasep, Cofins, Salário-Educação, Cide (que incide sobre os combustíveis), ICMS (estadual) e ISS (municipal). No lugar destes, haveria apenas dois tributos, o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo (IS).

O IS incidiria sobre itens específicos, como petróleo e derivados, combustíveis e lubrificantes, cigarros, energia elétrica, serviços de telecomunicações, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, veículos, pneus, partes e peças. Já o IBS incidiria sobre os demais.

A proposta ainda leva a CSLL, que incide sobre o lucro líquido das empresas, para dentro do Imposto de Renda, o que acarretaria em um aumento de alíquotas para as pessoas jurídicas. E passa para a União a responsabilidade de arrecadar o ITCMD, o imposto sobre heranças, apesar de toda a arrecadação continuar destinada aos municípios. Para Hauly, isso seria necessário porque grandes patrimônios estão espalhados por vários municípios, então, seria mais consistente aplicar um tributo nacional. Além disso, a União tem mais condições para fiscalizar possíveis sonegações. O IPVA, de veículos, continuaria na órbita estadual, mas também seria direcionado às prefeituras.

A votação dessa reforma tributária está parada, à espera de uma definição sobre as mudanças nas regras da Previdências. As negociações, no entanto, continuam ativas. Hauly afirma já ter tido mais de 170 reuniões com o governo e diversos setores da economia. Ele admite que estão em andamento alguns ajustes técnicos à minuta, que foi apresentada em agosto.

O relator garante que as alterações não mudam a essência do texto divulgado. Entre as mudanças está, por exemplo, a permissão para que empresas abatam do IS créditos de tributos pagos sobre o consumo de energia elétrica.
— Assim, o Imposto Seletivo atende os dois lados. Da forma como estava na minuta, o setor industrial não podia creditar o consumo de energia — explica o deputado.

Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal, vê com bons olhos a proposta, mas critica o período de transição previsto para a reforma entrar em vigor: cinco anos.
— É uma transição muito abrupta. É necessário um período de teste do novo imposto. A transição pode levar um investimento a tornar-se não competitivo do dia para a noite. O ideal é reduzir progressivamente a estrutura anterior e ir aumentando o novo imposto gradativamente. Assim, consegue-se manter a carga tributária constante — afirma Appy.

A advogada tributarista e professora da FGV Direito Rio Melina Lukic está no Canadá, estudando o sistema tributário do país. Lá, conta, o sistema é dual. Houve unificação dos impostos em cada esfera de governo, criando-se um só sobre valor agregado e outro que reúne os tributos federais.
— Desde a Constituição de 1988, a cada dez anos, tenta-se unificar os impostos federais e estaduais e nunca se consegue, devido à resistência dos estados em abrir mão de sua competência para legislar na área. O que propomos é começar logo pela unificação dos federais. Já seria um enorme avanço — afirma Melina.

Para o presidente do Insper, Marcos Lisboa, qualquer reforma tributária tem que estabelecer um sistema tributário igual para todos, no qual as alíquotas incidam sobre a receita (menos salário), juros e lucro:
— Tem que ter uma alíquota igual para todo mundo, com algumas poucas exceções, umas três ou quatro, no máximo. E o imposto deve ser cobrado no destino (no local onde o produto é consumido). É isso que manda a boa tributação. Não podemos nos desviar do sistema tributário dos países desenvolvidos.

A proposta de Hauly ainda tem que passar por um processo de negociação com a equipe econômica do governo. O deputado aguarda uma contraproposta do Ministério da Fazenda. Ele espera levar o texto a plenário no primeiro semestre do ano que vem :
— Até lá, já deve ter se resolvido a questão da Previdência e abre espaço para a gente. Deve ser a matéria do primeiro semestre de 2018.

Fonte : O Globo

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